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“O governo trocou meu monitor de glicemia”! Dá para confiar no novo?

Uma discussão sobre monitores de glicemia, licitações públicas e financiamento da saúde, por Ronaldo Wieselberg! 

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Nos últimos dias, surgiu pela internet uma sensação de revolta. Os monitores de glicemia fornecidos pela secretaria da saúde do estado de São Paulo, até então, os famosos Accu-Chek Active, da Roche, foram substituídos pelos desconhecidos Injex Sens II, fabricados na Coreia do Sul, sob a tutela de uma fabricante brasileira, a Injex.

Isso já tinha acontecido antes, em Minas Gerais, quando houve substituição dos monitores anteriores pelo até então desconhecido monitor CEPA.

Imediatamente, as pessoas decidiram comparar os resultados dos testes dos dois monitores, para “verificar” qual deles era o mais exato. E, claro, tiveram decepções.

Antes de começar, é preciso lembrar que, por lei, os resultados exibidos nos monitores de glicemia capilar – ou seja, dos testes de ponta de dedo – não podem variar mais do que 15% em relação aos valores de glicose plasmática. Ou seja, a diferença entre o resultado do monitor de glicemia e o exame do laboratório pode ser de 15% para mais ou para menos.

Assim, se o seu valor de glicemia no laboratório foi de 100mg/dl, uma medição do seu monitor de glicemia entre 85mg/dl e 115mg/dl ainda é aceitável. E, também, caso a sua glicemia, no laboratório, tenha dado 200mg/dl, uma medição do monitor entre 170mg/dl e 230mg/dl… continua aceitável!

A capacidade de um monitor de glicemia de transformar aquela gotinha de sangue no seu dedo em um valor numérico chama-se acurácia. A maneira mais confiável de saber se o seu monitor corresponde às expectativas é levá-lo junto quando for fazer o exame de sangue no laboratório e comparar os resultados. Para esse teste, é preciso prestar atenção em algumas coisas…

  • O sangue deve ser o mesmo. O melhor seria pegar uma gotinha de sangue do tubinho que será enviado ao laboratório – o que NÃO SERÁ FEITO, pois pode contaminar o sangue da amostra inteira! –, mas algo que pode ser feito é realizar o teste com o seu monitor de glicemia num dedo do mesmo lado que foi coletado o sangue. A diferença vai existir, claro, mas, dessa maneira, diminuímos essa diferença ao máximo. Nada, também, de aproveitar o furo da agulha de coleta para fazer o teste, certo?
  • Quando comparamos dois monitores de glicemia, um com o outro, o teste é INCONCLUSIVO. Isso acontece, simplesmente, porque não temos o resultado do exame de laboratório para servir de referência. Assim, caso um dos monitores mostre 170mg/dl e o outro mostre 230mg/dl, vamos achar “um absurdo”, que pode muito bem ser aceito caso o valor da glicose plasmática seja 200mg/dl.
  • O método de medição dos aparelhos deve ser o mesmo. Hoje, os principais aparelhos do mercado utilizam dois tipos de tecnologia de medição: o biossensor – que utiliza uma pequena corrente elétrica, de intensidade variável de acordo com a quantidade de glicose na amostra de sangue – e a colorimetria – baseado em uma enzima nas tiras, que muda a coloração das tiras de teste, e essa mudança de cor é lida por um sensor no aparelho. Sabemos, também, que a colorimetria apresenta um valores de medição um pouco mais altos.
  • Quanto mais alta ou mais baixa a glicemia, maior a imprecisão em TODOS OS MONITORES. Isso ocorre porque a corrente elétrica do biossensor pode sofrer muita ou nenhuma variação; a cor pode mudar muito ou não ser uniforme na colorimetria…

Assim, a ideia de comparar um monitor com o outro, sem nenhum exame de laboratório, é bastante errada. Só vai trazer confusão.

De qualquer forma, todos os monitores aprovados no Brasil devem ter registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a ANVISA, e para seu uso, as tiras devem estar dentro do prazo de validade com as mãos devem estar limpas e secas.

Ufa! Finalmente, chegamos às comparações.

 

TESTANDO OS NOVOS MONITORES DE GLICEMIA

accu-chek performa nano active diabetes

Para não dizer que somos injustos de comparar uma marca famosa com uma marca desconhecida, comparamos dois monitores da Roche, o Accu-Chek Performa Nano (biossensor) e o Accu-Chek Active (colorimetria). Observe a diferença (foto acima)… o Active tem valores mais altos, como era de se esperar pelo método, e a diferença entre os valores não passa de 25mg/dl – o que, lembrando, sem os exames laboratoriais, não adianta nada.

Sens II medidor coreano diabetes

 

Vamos aos malvados! Na foto à esquerda, perceba uma diferença de 20mg/dl entre os valores, sendo o Active (colorimétrico) maior do que o Sens II (biossensor). Ainda assim, sem o valor do laboratório, não dá pra afirmar nada.

O detalhe, aqui, é que um deles indica um valor de hipoglicemia. A dica é que, caso esteja com algum sintoma de hipoglicemia, corrija, uma vez que a glicemia pode estar caindo. Caso não tenha sintomas, repita o teste.

 

injex sens II medidor diabetes

Que bonito, que beleza! Resultados praticamente iguais, então, a glicemia era essa mesma?! Pode ser que sim, pode ser que não. Lembram que eu falei de uma variação de 15% a mais ou a menos? O que garante que ambos os monitores não estejam com a mesma variação percentual, para cima ou para baixo? Sim, só o exame laboratorial… que não está disponível!

E aí, o que fazer, então? Em quem confiar?

Bem, a resposta é simples. A variação é relativamente pequena, certo? Então, na imensa maioria das vezes, a diferença da glicemia “real” (plasmática, no exame do laboratório) para a “medida” (no monitor de glicemia) não vai afetar a conduta.

Uma hiperglicemia continuará a ser uma hiperglicemia, e demandará tratamento com insulina, por exemplo. Uma hipoglicemia continuará a ser uma hipoglicemia, e demandará tratamento com a ingestão de alimentos ou bebidas açucarados. Mesmo em caso de uma superdosagem de insulina, a variação de dose será de, no máximo, uma unidade – e a hipoglicemia será detectada. No caso de uma hipoglicemia, um consumo de quantidade maior de carboidratos para corrigir uma hipoglicemia “falsamente baixa” não necessariamente acarretará uma hiperglicemia.

Então, o fato de precisar trocar o monitor de glicemia não significa que “o governo não se importa com quem tem diabetes”. Significa, apenas, que a empresa que agora fornece os materiais ganhou da concorrência para se tornar fornecedora.

E aqui, começa a segunda parte da nossa jornada. Por que, então, ó raios e trovões, os fornecedores precisam mudar tanto?

Para explicar isso, vamos entender como funciona o fornecimento de equipamentos no Sistema Único de Saúde.

 

GUIA BÁSICO DO FUNCIONAMENTO DO SUS

Basicamente, a cada ano, o planejamento financeiro para os gastos com a saúde – isso inclui o diabetes – é revisto, de maneira a reajustar o orçamento, pagamento de servidores, compra de medicamentos e aparelhagem de acordo com a inflação. Portanto, os contratos dos fornecedores, em geral, também são anuais. Assim, a cada ano, são abertas novas licitações e, em geral, quem ganha é a empresa que cobra menos pelo fornecimento.

Muitas vezes, os custos de trocar todos os aparelhos e fornecer tiras de determinado tipo sai “mais barato” para o governo do que manter um aparelho, recebendo apenas as fitas. E aí, volta e meia, os monitores são trocados, por exemplo.

E então, falando em custos, entramos na parte mais complicada da história – ou como dizia um conhecido meu, “na parte mais baixa do buraco” –, o financiamento do SUS.

Lá no século passado – ou seja, no final do século XX – quando o SUS foi criado, esperava-se que o financiamento dele fosse misto, ou seja, parte federal, parte estadual, parte municipal. Assim, o governo federal repassaria uma verba mínima de manutenção – baseada, dentre outras coisas, na população do local –, que seria complementada pelo governo estadual, mais competente para avaliar as necessidades regionais de cada estado, e também complementada pela verba municipal, compatível com os problemas inerentes de cada município.

Vamos pensar em alguns exemplos puramente fictícios.

A cidade de Ji-Paraná, em Rondônia, receberia uma parte da verba do governo federal, complementada com verba estadual para a vacinação contra febre amarela, e também complementada com verba municipal para erradicar casos de diarreia devido às eventuais más condições sanitárias… E a cidade de São Paulo, grande capital, receberia uma verba federal maior, complementada pela verba estadual para tratar casos de leptospirose devido às enchentes da região da Grande São Paulo, e complementada pela verba municipal para tratar vítimas de acidentes automobilísticos. Na teoria, funciona bem, não?!

Vamos começar a complicar. Essa verba deve ser utilizada para todos os programas de prevenção, vacinação, tratamentos, manutenção dos serviços de saúde, saneamento básico…

Usando de metáforas, a verba total recebida seria um bolo – cada uma das fontes pode ser um dos ingredientes do bolo, se preferir – e cada programa de saúde seria uma fatia do bolo. Pois é. Com tantos programas, tantas pessoas adoecendo e precisando de tratamento… São muitas fatias para pouco bolo!

Quer complicar ainda mais? Medicamentos de alto custo – por exemplo, os análogos de insulina para o tratamento do diabetes, muitos medicamentos para o tratamento de câncer, etc. Essas “fatias” do nosso bolo precisam ser maiores, uma vez que esses medicamentos são mais caros. O problema é que o bolo tem um tamanho limitado – a verba disponível não é infinita. Assim, para que alguém receba uma fatia maior, outro alguém precisa receber uma fatia menor.

E, agora, a parte mais chata… A “fatia do bolo” que o tratamento do diabetes recebe é uma das menores de todas. Algumas migalhinhas, só.

sus brasil diabetes

Imagine, então, com um orçamento mínimo, ter que providenciar metformina, glicazida, insulina NPH e regular, seringas, testes de glicose plasmática, testes de hemoglobina glicada, as medicações de alto custo – Lantus, Levemir, bombas de insulina – e ainda ter que pensar nos monitores de glicemia. De onde puderem cortar gastos, vão cortar.

Oras, então, não seria interessante aumentar o tamanho do bolo? Assim, todas as fatias poderiam aumentar de tamanho, certo?

Corretíssimo. E aí, chegamos no fundo do poço.

O nosso bolo não consegue crescer.

Recentemente, foi divulgado que o Ministério da Saúde deixou de repassar mais de 17 bilhões de reais em verbas no período de um único ano. Nos últimos anos, a saúde no Brasil foi sucateada de tal forma pela falta de recursos – ou do repasse destes recursos – que as instalações dos serviços públicos de saúde (AMAs, UPAs, hospitais e maternidades) estão à beira da falência. Muitos programas de prevenção básica – com conceitos básicos de higiene, como lavar as mãos e escovar os dentes, nutrição e até mesmo educação sexual – foram repassados às escolas, parcerias público-privadas e às ONGs.

É difícil não lembrar das associações de diabetes nesse momento, não é? Mas, vamos fugir do nosso universo conhecido: Pastoral da Criança, criada pela Dra. Zilda Arns – indicada ao Prêmio Nobel da Paz, inclusive! – trabalhou muito, sem apoio do governo, em prol de crianças carentes.

Se por um lado, a quebra das patentes e fornecimento gratuito dos medicamentos contra a AIDS foi uma vitória, de outro, os programas de prevenção sofrem com o descaso. Se por um lado, os programas de vacinação são exemplo, de outro, a falta de saneamento básico ainda é um problema de saúde pública. Se por um lado os incentivos financeiros do governo às famílias tiraram muitas delas da miséria, de outro, a falta de programas nutricionais adequados está levando estas mesmas famílias à obesidade e ao desenvolvimento do diabetes tipo 2, hipertensão e doenças cardiovasculares.

Então, qual a solução? Hora de fugir do país? Hora de se esconder? Não! Agora é a hora de fazer valer a nossa vontade, nas urnas, enfrentando a dura missão de escolher os candidatos com as melhores propostas, e o mais importante, cobrá-los para que cumpram suas promessas com transparência.

E tudo isso porque trocaram os monitores de glicemia… Saúde não é a coisa mais simples do mundo…

ronaldo wieselberg perfil diabeticoolRonaldo José Pineda Wieselberg tem diabetes há mais de 20 anos. É estudante de Medicina na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa (FCMSCSP), auxiliar de coordenação do Treinamento de Jovens Líderes em Diabetes da ADJ Diabetes Brasil e Jovem Líder em Diabetes pela Federação Internacional de Diabetes (IDF), com trabalhos sobre diabetes premiados e apresentados no Brasil e no exterior. Apesar de ter o mesmo nome de vários grandes jogadores de futebol, prefere o xadrez.
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4 Comentários

  1. Nossa! Parabéns pelo texto. Minha filha tem 5 anos e é portadora de Glicogenose. A geneticista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre também pediu para medir a glicose com o aparelho de Thaís, no momento da coleta. Ela tb recebe as tiras do governo . A cada 6 meses, a Secretaria Municipal de Saúde pede para levar para verificar o estado e calibrar o aparelho. Também fico com medo de medições erradas pq, num portador de Glicogenose, a glicemia pode ir abaixo de 20 (ex: 8, 9, 12…).

  2. Acontece que a diferença está muito maior que 15%! Se eu fosse insulino-dependente, teria aumentado a dose sem necessidade e correria o risco de ter hipoglicemia! Infelizmente, não achei no site, um jeito de me comunicar com eles. O “fale conosco ” dá erro!

  3. Medi a minha glicemia, em um aparelho deu 141 e outro deu 148, é possível que um dos dois esteja certo ou errado?

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