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Diabetes em Catástrofes – a luta pela saúde em meio ao caos

História reais de diabéticos em áreas de terremotos, enchentes e guerras civis. Veja o que eles fizeram para sobreviver e continuar cuidando da saúde em meio ao caos.

POR RONALDO WIESELBERG

Imagine a cena. Você está em um almoço com a sua família. Seus filhos à mesa, assim como o seu esposo ou esposa. De repente, um estrondo. A parede da sala caiu, as estantes balançam, derrubando alguns livros. Uma nuvem de poeira se levanta, enquanto estilhaços da parede são arremessados na direção de todos. Vocês se abaixam, e, por sorte, ninguém é ferido. A terra treme por alguns segundos, sacudindo sob seus pés, e a luz acaba, repentinamente. O terremoto não deixou vítimas, ao menos não na sua família. Porém, muitos lugares foram devastados. Inclusive hospitais e casas de outras pessoas, deixando vítimas, muitas vezes fatais.

E aí, você se lembra: não aplicou a insulina antes do almoço.

Pareceu uma cena esquisita? Algo fora de lugar? Ou será que não?

Os acontecimentos recentes ao redor do mundo nos fazem – ou ao menos, deveriam fazer! – pensar sobre a situação de uma pessoa com diabetes em meio às tragédias, sejam elas naturais ou causadas pelo homem. Terremotos, como o acontecido no Haiti em 2010; o furacão Katrina, nos Estados Unidos, em 2005; o Tsunami na Ásia em 2004; ou os recentes conflitos armados na Síria e na Ucrânia, todos são eventos em que a simples falta de energia elétrica, água potável, comida e abrigo são suficientes para causar um caos virtualmente infindável. O que fazer, então, tendo diabetes nesses casos?

Os sistemas de saúde, em geral já sobrecarregados pela simples procura por parte da população, entram, então, em colapso. Quedas de energia podem ocasionar o fim de condições de armazenamento da medicação. Danos às vias de transporte podem significar que não haverá meios de conseguir outros medicamentos.

Neste artigo, contarei alguns casos sobre o que pessoas com diabetes fizeram nessas situações.

Observação: nomes foram trocados de maneira a preservar a identidade das pessoas nos relatos.

 

1. REVOLUÇÃO SÍRIA (Síria, 2011-atualidade)

Uma guerra civil, nascida de protestos por causa do desemprego e da crise econômica da Síria, país no Oriente Médio, que se estende até os dias atuais, gerando cerca de 6,5 milhões de desabrigados e mais de 2,3 milhões de refugiados – muitos deles no Brasil! – abre a nossa série de relatos.

Tristemente, uma vez que o Oriente Médio está constantemente nos nossos meios de comunicação, com notícias infelizes de bombardeios e ataques suicidas, nos acostumamos de tal forma com a barbárie diária que ela nos parece comum. Para aqueles que ali estão, porém, a situação é muito grave.

Destruição em Damasco, após um atentado à bomba, em outubro de 2012.

Mohamad tem 30 anos e era comerciante na Síria. Ele, sua mulher e seus dois filhos conseguiram escapar para o Brasil numa jornada pela Jordânia, à pé. Um de seus filhos, Bilel, tem diabetes tipo 1. Este relato é sobre a fuga de Mohamad, Bilel e família de Damasco, capital da Síria, até a Jordânia.

Por ter, na época, uma boa condição financeira, Mohamad conseguia comprar as insulinas que Bilel usava – Lantus e Humalog. Quando os conflitos começaram, Mohamad conseguiu, ainda, comprar alguns frascos de insulina, e considerou que pelo menos por alguns meses, teria condições de esperar o conflito terminar. Porém, o conflito foi se alongando…e se alongando. Semanas tornaram-se meses e meses tornaram-se anos.

Com o ataque às redes elétricas por parte do exército sírio, cidades inteiras, inclusive a capital, Damasco, sofreram quedas de energia. Com isso, o armazenamento da insulina de Bilel tornou-se um problema muito grande. Em contato com o gelo, ela poderia congelar e tornar-se inútil. Se armazenada na geladeira, além dos problemas de queda de energia, os bombardeios poderiam acertar o local e destruir todo o estoque. Como, então, proteger os preciosos frascos de insulina restantes das variações de temperatura do local, que variava entre trinta e cinco graus Celsius durante o dia para, muitas vezes, cair próximo ao zero durante a noite?

Criança refugiada dos conflitos da Síria, em abrigo da UNHCR, Comissão de Refugiados da ONU. Não é Bilel, mas poderia ser.

Mohamad pensou em uma solução inusitada. Os esquimós construíam abrigos de gelo para se isolar do frio externo, mantendo a temperatura dentro dos iglus constante, e maior do que a temperatura de fora. Então, ele decidiu usar o solo para abrigar as insulinas. Colocou os suprimentos em uma caixa de isopor e cavou um buraco no quintal, à sombra. Escondeu ali as insulinas, e, sempre que Bilel precisava de mais, ele desenterrava a caixa e tirava apenas o necessário.

A casa de um dos vizinhos da família foi bombardeada, e a energia elétrica faltou por vários dias. Durante semanas o exército sírio trocou tiros com os manifestantes praticamente na rua de Mohamed e Bilel, mas ninguém ameaçou o local seguro das insulinas. Quando a situação permitiu uma fuga, Mohamad desenterrou a caixa uma última vez e fugiu para a Jordânia, levando consigo a família e as insulinas restantes. De lá, Mohamad se refugiou com a família no Brasil, e Bilel atualmente consegue as insulinas pelo SUS, como refugiado de guerra.

 

2. SISMO DO HAITI (Haiti, 2010)

Essa história tem um personagem muito especial, o Young Leader haitiano Widny Dworce. Ele é, atualmente, o Conselheiro Eleito dos Young Leaders região NAC, que compreende a América do Norte e o Caribe, e trabalha ativamente pelas pessoas com diabetes no Haiti.

Este terremoto, ocorrido em 12 de janeiro de 2010, deixa suas marcas ainda hoje, quatro anos depois do ocorrido. Além dos 316 mil mortos, entre eles a médica pediatra e sanitarista brasileira Zilda Arns, indicada ao Nobel da Paz, o incidente deixou mais de 350 mil feridos e mais de 1,5 milhão de flagelados. O país, um dos mais pobres do mundo, ainda não se recuperou.

Jovem haitiano em meio aos escombros de Port-au-Prince, 2010. Não é Widny, mas poderia ser.

Widny, ao contrário de Mohamad e Bilel, não teve tempo para pensar num local seguro para suas insulinas. Usando insulinas NPH e regular, seu estoque estava em casa na hora do tremor. Com a queda da parede em cima da geladeira, os frascos se quebraram. As farmácias estavam destruídas, assim como todo o estoque de medicamentos estava perdido. A pouca insulina que ele tinha não iria durar muito.

O programa Insulin for Life, da IDF, se encarregou de entregar insulina no Haiti, porém, conseguia chegar apenas até Port-au-Prince, capital do país. Além disso, o risco de desmoronamentos devido às estruturas abaladas era muito grande para entregar as insulinas para quem precisava armazenar em seus abrigos improvisados.

Para sobreviver, então, Widny teria que caminhar cerca de 20km diários, em meio aos escombros, até a FHADIMAC (Federação Haitiana de Diabetes e Doenças Cardiovasculares, em tradução livre, a associação de diabetes à qual Widny pertence) para tomar uma dose diária de insulina. O único tipo de exercício que ele teria seriam as caminhadas diárias. A alimentação seria aquela que existisse, podendo ser, até, biscoitos de barro, preparados misturando água, terra e um pouco de manteiga.

Acampamento de desabrigados na base do Exército Brasileiro da MINUSTAH, Haiti, 2010.

Widny sobreviveu assim por alguns meses. Lentamente, o Haiti foi se recuperando do desastre, mas ainda há muito para se fazer. Encontrá-lo em Melbourne foi uma das coisas mais emocionantes pela qual já passei, e hoje ele luta arduamente em prol das pessoas com diabetes no Haiti, sabendo das péssimas condições que enfrentam.

 

3. ENCHENTES EM SANTA CATARINA (Brasil, 2008)

Em 2008, a região do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, foi castigada por chuvas muito além do esperado. O resultado foram enchentes que mataram 135 pessoas, desalojando cerca de 13 mil e prejudicando o abastecimento de 150 mil pessoas. O Brasil se manifestou em doações e equipes de profissionais voluntários para auxiliar no local, assim como os governos dos Estados Unidos e da Alemanha.

Roberto estava em casa quando a chuva começou. Ele não se lembrava de ter visto uma daquelas antes, apesar de o pai sempre contar da enchente de 1979, alguns anos antes de ele nascer. Porém, pensou ele, não havia de ser nada. Tomou o comprimido de metformina pós jantar e foi assistir televisão.

Rua inundada em Itajaí (SC), 2008.

Naquela noite, a casa de Roberto foi inundada, e a metformina que ele tinha se perdeu junto com as roupas, comida e mobília. Ele teve a sorte de ser removido com vida para um abrigo em uma das igrejas da região de Jaraguá do Sul. Porém, o acesso deficiente à alimentação, exercício e a falta da medicação contribuíam para o péssimo cuidado do diabetes.

As doações supriam as necessidades de alimentos, porém, o número de alimentos ricos em carboidratos e o acesso a bebidas açucaradas não contribuíam em nada com a alimentação recomendada. Os medicamentos doados não incluíam medicamentos que tratassem diabetes. Como se não bastasse, o estresse pelo qual Roberto estava passando fazia sua glicemia subir ainda mais. A glicemia de Roberto ficou alterada durante cerca de três semanas, o suficiente para que ele, mesmo tendo diabetes tipo 2, tivesse um caso de cetoacidose diabética.

O tratamento da equipe médica o salvou, mas os danos em seu organismo foram grandes. Com o passar do tempo e falta de cuidados adequados, no final daquele ano, os rins de Roberto demonstraram perda parcial da função. Roberto desenvolveu uma nefropatia diabética. Hoje, por sorte, Roberto conseguiu um transplante renal e vive sem problemas, mas ainda se lembra do ocorrido. E cuida muito bem de seu diabetes.

 

Estes três casos reais mostram os principais problemas enfrentados por quem tem diabetes em meio às catástrofes. Acesso e armazenamento da medicação, alimentação, exercício. O tripé do bem-estar de quem tem diabetes é drasticamente alterado, e torna-se muito difícil cuidar da maneira correta da doença.

Desde 2001, a Federação Internacional de Diabetes (IDF) sentiu necessidade de um programa voltado para esse aspecto do diabetes. O programa TIDES (“Ondas”, em tradução livre, é sigla para “Towards Improvement In Diabetes Emergency Settings”, “Em Direção às Melhorias no Diabetes em Situações Emergenciais”, em tradução livre) trabalha junto à Organização Mundial de Saúde (OMS) de maneira a prover suporte para pessoas com diabetes e outras doenças crônicas ao redor do mundo. O programa Insulin for Life também auxilia, provendo insulina; e recentemente, a Cruz Vermelha e o Crescente Vermelho reconheceram que, após o tratamento de feridos graves – que precisem de tratamento cirúrgico –, o tratamento de doenças crônicas, como diabetes e asma, é tão importante quanto o acesso à água potável e comida.

O importante a lembrar é que diabetes é uma doença que precisa de cuidados constantes. Após os cuidados imediatos para preservar a vida, o tratamento da doença merece o máximo de importância, e que não devemos medir esforços para isso.

Forte abraço, e até a próxima!

 

ronaldo wieselberg perfil diabeticoolRonaldo José Pineda Wieselberg tem diabetes há mais de 20 anos. É estudante de Medicina na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa (FCMSCSP), auxiliar de coordenação do Treinamento de Jovens Líderes em Diabetes da ADJ Diabetes Brasil e Jovem Líder em Diabetes pela Federação Internacional de Diabetes (IDF), com trabalhos sobre diabetes premiados e apresentados no Brasil e no exterior. Apesar de ter o mesmo nome de vários grandes jogadores de futebol, prefere o xadrez.
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3 Comentários

  1. Nossa, quase sempre que eu via algo sobre uma catástrofe, ficava me perguntando justamente isso, como que as pessoas com doenças crônicas e outras limitações eram tratadas e lidavam com a situação, então parabéns e muito obrigada ;3 Pode por favor fazer uma reportagem semelhante, mas incluindo as vítimas da seca na região norte-nordeste do país?

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